O Homem Duplicado é uma dessas obras que será odiada por uns, e louvada por outros. Há um claro enigma psicológico na trama desenvolvida pelo genial Saramago, que Villeneuve pinta, abusando dos tons amarelados, no intuito de debater com o espectador o que é ou não real e onde e como uma pessoa enfrenta suas frustrações. Não vou adiantar nada, veja apenas o trailer. O longa tem um ritmo lento e uma trama que, gradativamente, vai se tornando densa e pode soar confusa. Quem conhece a obra de Saramago sabe que ela está menos interessada em esclarecer e explicar as coisas do mundo, mas sim debater as incoerências da vida. Então, se prepare para o desafio.
[Vou tentar desvendar o mistério - spoilers em seguida] Adam e Anthony não são apenas idênticos, são a mesma pessoa. Um é a projeção do que o outro queria ser. Misterioso, com um emprego glamouroso de ator de cinema, que usa roupas transadas, pilota uma moto e tem uma esposa apaixonada e que espera um filho teu. A vida de Adam não tem nada disso. É seca, fria, amarelada e com pouca luminosidade. Aqui uma nota para o ótimo trabalho de fotografia de Nicolas Bolduc. A coincidência dos dois terem a mesma cicatriz no mesmo local já deixa explicito que há algo de esquisito na trama, algo irreal. De repente Adam olha para a cidade, e uma aranha gigantesca caminha sobre os edifícios. Era a pista que faltava, estamos dentro de um sonho. Ou seria um pesadelo?
Perceba que na primeira vez que Adam assiste o filme, em que sugere a existência de seu praticamente clone, ele não percebe Anthony. Ele fecha o notebook e vai dormir. No meio da noite, ele vai rever o filme, e só assim enxerga Anthony. Acredito que é nesse momento que o sonho começa, ao projetar a própria imagem em um figurante do filme que acabou de existir. Como é que Adam não viu alguém idêntico a ele, na primeira vez que viu o filme? Ele viu o que queria ver, no momento em que quis ver.
Será muita coincidência que ambas as esposas, de Adam e Anthony, são loiras muito parecidas? Perceba como a relação sexual é explorada de forma intensa na trama, seja na frieza de Mary (namorada de Adam) e a amorosidade de Hellen (esposa de Anthony). Como acredito que é um sonho masculino, é inevitável não ter algo sexualmente transgressor, como pode-se ver na primeira cena do filme. A frustração sexual de Adam é projetada na promiscuidade de Anthony. Nesse ponto do roteiro, Freud dá as cartas. A relação com a mãe de Adam é que não consegui encaixar nesse sonho dantesco. Mas deve ter.
Chegamos à aranha. O aracnídeo é um dos símbolos que representam o poder feminino. Opa, tudo a ver. Pesquisando mais a fundo, há indícios que sonhar com aranhas indica questões sexuais reprimidas, o que também se encaixa plenamente com a temática do filme. Mas convenhamos que nem todos os espectadores conseguirão associar os problemas sexuais de Adam às arranhas. Melhor, a maioria dos espectadores nem vai perceber que tudo aquilo foi apena um sonho. Para degustar o sabor levemente amargo de O Homem Duplicado é preciso ter uma bagagem cinematográfica ou literária, afinal, não é fácil montar o quebra-cabeça.
O Homem Duplicado, infelizmente, será notado como um filme estranho e confuso, que a maioria das pessoas não conseguirá explicar. Por outro lado teremos um quinhão de pseudointelectuais elevando o filme ao caráter de obra prima, só por ter conseguido desvendar parte do mistério. É tão óbvio que o cartaz do filme acima já deixa explicito que é algo dentro da mente do protagonista. Nem um, nem o outro. O filme é interessante, desafia o espectador, mas tem suas falhas. Eu gostaria que o filme tivesse mais tempo para explorar a dúbia relação de Adam e Anthony e brincar mais com as expectativas do público. Para quem gosta de desafios, indico assistirem O Homem Duplicado, que embora regular, vale para um debate na mesa do bar.

O Homem Duplicado (Enemy - 2013)
Direção: Denis Villeneuve
http://www.imdb.com/title/tt2316411/
Gilvan Marçal - gilvan@gmail.com
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